Antes de chegar ao Brasil, Fúria foi apresentado na Europa, como normalmente acontece com as produções da Companhia Lia Rodrigues, uma vez que, em grande parte, são os apoios e cachês europeus que permitem que Lia continue seu trabalho no Centro de Artes da Maré. Eu tive a oportunidade de ver este espetáculo duas vezes em Paris, em locais muito diferentes um do outro - o Teatro Nacional de Chaillot e o 104.

O público do Chaillot é sofisticado, rico e branco. As perguntas após o espetáculo giraram em torno de detalhes da obra: a trilha sonora (que incomodou a muitos), a concepção coreográfica, a nudez dos dançarinos (que também incomodou demais) e assim por diante. No 104, o ambiente é bem diferente. Situado no 19e arrondissement, este centro cultural é definido pelo seu diretor José-Manuel Gonçalves como uma plataforma colaborativa artística que está aberta à diversidade tendo em vista criar um território de experimentação. O público era completamente distinto, mais popular no melhor sentido deste termo e, desta vez, o que desestabilizou a plateia não foi a trilha sonora ou a nudez dos bailarinos, e sim, o que o espetáculo escancara culminando no final da apresentação com cartazes que indagavam quem matou Marielle Franco. Muita gente saiu emocionada do teatro e eu quase não pude falar, sentindo um nó apertado na barriga.

Não foi a primeira vez que vi os espetáculos de Lia fora do Brasil. Em 2016, estava na Alemanha quando estreou para que o céu não caia, e lá testemunhei duas senhoras deixando o teatro Hau em Berlim com os olhos cheios de lágrimas. Naquele contexto, o que para Lia e os dançarinos da companhia, havia nascido na Maré e na obra do shamã Davi Kopenawa, certamente ganhava outros sentidos a partir de memórias, igualmente atreladas à vida nua e à extinção.

Observar os trabalhos da Companhia Lia Rodrigues a partir de diferentes perspectivas é um exercício que provoca reflexões inevitáveis sobre lugar de fala e estigmas. Não se trata apenas de geografia, mas de uma cartografia afetiva que se constrói a cada deslocamento. Se a obra fosse isolada do seu entorno, nada disso teria importância. Alemães, franceses e brasileiros estariam vendo o mesmo trabalho, encapsulado em suas próprias expectativas. Não é o que acontece. Nem seria possível. Assim, embora cuidadosamente coreografada, a obra muda a todo instante. O olhar que estigmatiza/exotiza é internalizado, assim como aquele que enxerga a inquietação política e encontra aí uma possibilidade de ação - uma pergunta e não uma afirmação.

Esta diversidade de experiências também constrói a cena, assim como as diferenças internas que expõem a multiplicidade de formas de vida sem camuflá- las. Faz parte do processo a coreógrafa branca e as pessoas negras e brancas
que dançam a precariedade e ao dançá-la inventam o corpo próprio e o corpo comum. Ali, naquele lugar, por um momento.

A impressão que se tem é que a multiplicidade dos lugares de fala exercita como inviabilizar o dualismo (pensar a si, submeter o outro), pois quem pensa/age/sente em Fúria são todos, cada qual a partir da sua perspectiva e sempre junto.

Por tudo isso que provoca, talvez este não seja apenas mais um espetáculo de dança da companhia, mas uma nova etapa de um aprendizado ético compartilhado que muda a cada vez e em nós.


Christine Greiner
Professora livre-docente em Comunicação e Artes pela PUC-SP. Ensina no
Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica