O que consegue se descolar do chão, onde havia sido enterrado para continuar invisível, em um país que sofreu as brutalidades da colonização, da escravidão, e que ainda não enfrentou as consequências da ditadura que viveu, de 1964 a 1985? Falamos do Brasil, país no qual as Forças Armadas admitiram oficialmente a tortura e os assassinatos, pela primeira vez, apenas em setembro de 2014, cinquenta anos depois do golpe militar que aqui instalou a ditadura. Dez anos antes, em 2004, Lia Rodrigues levou a sua companhia para a Nova Holanda, uma das 16 favelas que compõem o Complexo da Maré. É o maior conjunto de favelas do Rio de Janeiro reunindo 40 mil casas e mais de 137 mil habitantes (45% com menos de 30 anos).

Lia começa a parceria com a Redes da Maré, uma organização que luta pela qualidade de vida e direitos da população de lá. Dela resulta o Centro de Artes da Maré, fundado em 2009, que se torna sede da companhia e da Escola Livre de Dança da Maré (ELDM). A Escola foi criada em 2011, com o objetivo de democratizar o acesso à arte para quem vive em estado de vulnerabilidade, e hoje reúne cerca de 350 alunos/ano. No Centro de Artes da Maré também funciona o Núcleo 2, com 25 jovens de 14 a 23 anos, selecionados em audição, que recebem uma bolsa para permitir a sua profissionalização, seja como bailarinos ou em profissões conectadas com a arte e a cultura. Para viver na Maré, é preciso inventar, a cada dia, a possibilidade de não ser assassinado pelas costas, mesmo usando uniforme e estando a caminho da escola, como aconteceu com Marcos Vinícios da Silva, de 14 anos, no dia 20/06/2018. No ano passado, tiroteios fizeram com que as escolas ficassem fechadas por 35 dias, ou seja, o ano escolar de um aluno na Maré é diferente do de quem não mora lá.

No Brasil, a cada 25 minutos, um jovem negro é morto, três vezes mais do que jovens brancos, configurando um genocídio. Gays, trans e tantas outras sexualidades também são alvo de discriminação. Ser pobre e morar na favela - que historicamente sempre demarcou uma exclusão social, entre nós - foi agora transformado em sinônimo de ser bandido.

É nesse ambiente hostil e instável que a companhia de dança que você vai agora assistir trabalha. Foi lá que Lia Rodrigues foi transformando o lugar em corpo, através da criação de Encarnado (2005), Contra Aqueles Difíceis de Agradar (2005), Pororoca (2009), Piracema (2011), Pindorama (2013) e Para Que o Céu Não Caia (2016). E, com o Núcleo 2, Exercício M, de Movimento e de Maré (2013) e Exercício P, de Pororoca e Piracema (2017). Agora, chegamos ao momento de Fúria (2018).

Nessa, que é a produção mais recente, uma alvorada incerta vai se desenhando e sendo salpicada por imagens que nos olham. As imagens vagueiam, rabiscam um contorno no espaço, bem na nossa frente. Uma caravela? Uma procissão? Uma arma ou uma bandeira? Corpos são arrastados. Surgem seres existentes e inventados. Misturas de fragmentos, fragmentos de misturas, materializando as sobreposições e embolamentos que nos formam.

As imagens se soltam, mas recusam as legendas imediatas. Apagam os seus limites, abrindo-se para a desorientação. Nos damos conta de não mais saber se estamos diante ou dentro delas, porque deixaram de ser guardiãs das suas referências.

Nós enterramos essas imagens em um ataúde, para que não mais nos olhassem, e elas surgem em um berço, fortalecidas, nos cuspindo a infinita ignorância que cultivamos. Lia e os bailarinos dca companhia nos demonstram como as suas referências foram metabolizadas, como não foram usadas como citação. Elas são muitas, e podemos lembrar, dentre outras, de Ana Maria Gonçalves, Octavia Butler, Mário de Andrade, Conceição Evaristo, Aimé Cesaire. Clarice Lispector, Harriet Ann Jacobs, Achille Mbembe, Futhi Ntshingila, Carolina Maria de Jesus, Angie Thomas e Djamila Ribeiro.

Fúria inaugura um mundo que não deveria poder ser inaugurado. Sim, porque este precisaria ser o mundo que nos compõe, mas não é. Esse novo trabalho nos desenraíza do conforto de uma ignorância que cobre com hipocrisia os danos hediondos da escravidão e do colonialismo que tecem o cotidiano do qual insistimos em desviar o olhar.

Leonardo Nunes, Clara Cavalcante, Felipe Vian, Carolina Repetto, Valentina Fittipaldi, Andrey Silva, Larissa Lima, Karoll Silva e Ricardo Xavier nos fazem ver que estamos ameaçados pela ausência da fúria. A sua falta nos espreita em cada uma das cenas que vão se emaranhando. Ficamos desorientados quando percebemos que está apagada em nós.

O momento é o de acordar a fúria. A fúria da força para resistir, a fúria da paixão por criar.


Helena Katz
Professora no Curso Comunicação das Artes do Corpo e no Programa
em Comunicação e Semiótica, na PUC-SP