Forte como o vento, pesado como as águas - Encantado, de Lia Rodrigues Companhia de Danças

Em janeiro de 2018 tive a oportunidade de realizar um sonho. Fui com a minha família conhecer o Maranhão, estado que atravessou minha vida há 15 anos atrás, a partir do meu encontro e entrada na Cia Mariocas, grupo de danças afromaranhenses sediado no Rio de Janeiro.

Na ocasião, vivi uma série de experiências que considero especiais. Visitei o Tambor de Crioula de Mestre Amaral, em São Luis. Senti a energia do “touro encantado” nos Lençóis Maranhenses. E pude visitar a Casa Fanti Ashanti, fundada por Pai Euclides Menezes e que carrega a especificidade de cultuar o Tambor de Mina e o Candomblé. Além destas práticas religiosas, a casa também realiza o Baião de Princesas, o Samba de Angola, para os boiadeiros, rituais ligados à pajelança, ao catolicismo (Divino Espírito Santo) e a cultura popular (como o boi de Corre Beirada e o Tambor de Taboca).

Passados os anos, me senti de alguma forma órfã das experiências que vivi na “terra da encantaria”. Até assistir “Encantado” da Lia Rodrigues Companhia de Danças. Pela primeira vez na vida eu havia saído do Brasil. Justamente para colaborar na exposição “Viva Maré”, que costura o trabalho em arte e cultura da Redes de Desenvolvimento da Maré com a trajetória da companhia de dança fundada por Lia Rodrigues. Nunca senti tanto frio, nunca senti tanta saudade de casa e nunca me senti tão estrangeira. Processos que entendo como de certa forma naturais, dadas as circunstâncias.

No monumental Théâtre National de Chaillot foi onde me senti mais estrangeira. Ali realmente entendi que estava no continente europeu e que os códigos eram outros. Entro na sala de exibição, me sento e aperto os olhos em direção ao palco. De cara identifiquei os cobertores que via durante o processo de criação do espetáculo no Centro de Artes da Maré. Mas identifiquei também os cobertores que são vendidos na Rua Teixeira Ribeiro na Maré, onde moro. Identifiquei a estampa floral idêntica ao cobertor que minha sogra me deu de presente e aquecida pelos cobertores que me confortaram simbolicamente no frio de Paris, comecei minha viagem.

Depois de ser remetida a Rua Teixeira Ribeiro e à minha própria família, fui remetida ao meu próprio corpo, através do corpo dos bailarinos e bailarinas. Sou uma mulher negra de 1,72 metro e 93 quilos. Tenho padrões corporais e raciais que muitas vezes não se encaixam nos padrões dos movimentos artísticos clássicos. Mas eu estava ali. Em cada um daqueles corpos tão plurais e não padronizados como o meu. E cada um daqueles corpos era a potência de jovens de favela e dos encantados das matas, das águas, da terra.

Acredito que a arte - e a dança em especial - tem caráter de criação de mundos. “Encantado” criou um mundo onde as sereias de águas doces e salgadas encontraram com os espíritos das matas, dialogaram com as bichas pretas numa ballroom “in Paris”, ouvi os cânticos das pajelanças brasileiras e vocalizações das populações nativas desta terra. Num fluxo crescente no palco. Que transbordou em mim.

Na encantaria e em rituais afroindígenas, cantamos:

“Eu sou forte como o vento
Sou pesado como as águas
Sou eu, rouxinol
Ando pela madrugada”

E assim como o rouxinol, é o espetáculo “Encantado”. Forte como o vento. Capaz de construir narrativas e derrubar padrões na arte hegemônica, assim como o tambor de crioula que vi em São Luis e as criações artísticas afroindígenas brasileiras. Pesado como as águas. Denso, profundo, enraizado, de pé no chão como o tambor de mina que vi na Casa Fanti Ashanti.

“Encantado” não é um espetáculo de dança. É uma experiência imersiva de vida, entre este e outros mundos. Como dizemos nas culturas populares: “Ninguém me contou.” Eu vi. Eu senti. Eu vivi “Encantado”.


Pâmela Carvalho
Educadora, historiadora, gestora cultural, pesquisadora e coordenadora da Redes
Da Maré